sábado, 14 de dezembro de 2019

14 Dezembro - Cântico espiritual



Onde te escondeste, meu Amado,
Deixando-me a gemer?
Como o cervo, tu fugiste,
Tendo-me ferido;
Clamando, te segui, mas tinhas ido.

Pastores, se fordes
Aos redis, lá na colina,
Se porventura virdes
Aquele que eu mais amo
Dizei-lhe que estou doente, peno e morro.

Procurando os meus amores,
Irei por esse montes e ribeiras,
Não colherei as Rores,
Nem temerei as feras,
E passarei os fortes e fronteiras.

Ó bosques e espessuras
Plantadas pela mão do Amado!
Ó prado de verduras,
De Rores esmaltado,
Dizei se por vós terá passado!

Mil graças derramando
Passou por estes soutos apressado,
E, enquanto os ia olhando,
Só com a sua figura
Vestidos os deixou de formosura.

Ai, quem pudesse curar-me!
Acaba de entregar-te já a sério;
Não queiras enviar-me
Outro novo mensageiro,
Que não sabe dizer-me o que jogo.

E todos aqueles que me cercam,
De ti mil graças relatando.
E todos mais me ferem.
E deixa-me morrendo
Um não sei quê que ficam balbuciando.

Mas como perseveras,
Ó vida, não vivendo onde vives,
E fazendo, para que morras,
As flechas que recebes
Do que do Amado em ti concebes?

Porque é que, se chagaste
Este coração, não o curaste?
E tendo-mo roubado,
Porque assim o deixaste,
E não tomas o roubo que roubaste?

Apaga meus enfados,
Qpe ninguém consegue desfazê-los
E vejam-te meus olhos
Porque tu és o lume deles,
E só para, ti quero tê-los.

Ó cristalina fonte,
Nesse teu semblante prateado,
Tirasses de repente
Os olhos desejados,
Que tenho em minhas entranhas desenhados!

Aparta-os, Amado,
Que me vou, voando.
[...]
Meu Amado, as montanhas,
Os vales solitários nemorosos,
As ilhas singulares,
Os rios sonorosos,
O silvo dos ares amorosos.

A noite sossegada,
Com o nascer da aurora,
A música calada,
A solidão sonora,
A ceia que recria e enamora.

Nosso leito florido,
De covas de leões enlaçado,
Em púrpura estendido,
De paz edificado,
De mil escudos de ouro coroado.

Atrás da tua pegada,
As jovens acorram ao caminho,
Ao toque da centelha,
Ao saboroso vinho,
Emissões de bálsamo divino.

Na cave interior
Do meu Amado bebi e quando saía,
Por toda esta veiga,
Já nada eu sabia
E o gado perdi que antes seguia.

Lá, deu-me seu peito,
Lá me ensinou ciência mui saborosa,
E eu me lhe dei com efeito
Sem pra mim deixar coisa;
Lá lhe prometi ser sua esposa.

Minha alma se entregou
E todos os meus bens, ao seu serviço:
Já não cuido do meu gado,
Nem já tenho outro ofício,
Que já só amar é meu exercício.


JOÃO DA CRUZ (1542-1591)

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