quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

28 Fevereiro - Sob o sol de Satã



Senhor, não é verdade que te tenhamos amaldiçoado; que pereça esse mentiroso, essa falsa testemunha, o teu insignificante rival! Ele apanhou-nos tudo, deixa-nos inteiramente nus, e põe na nossa boca uma palavra ímpia. E resta-nos o sofrimento, que e O nosso quinhão comum contigo, o sinal da nossa eleição, herdada dos nossos pais, mais activa do que o fogo casto, incorruptível… A nossa inteligência é grosseira e comum, a nossa credulidade
sem fim e o corruptor subtil, com a sua língua dourada... Nos seu lábios, as palavras familiares tomam o sentido que lhe agrada e a mais belas enganam-nos melhor. Se nos calamos, ele fala por nó e, quando tentamos justificar-nos, o nosso discurso condena-nos. O incomparável raciocinador, desdenhoso de contradizer, diverte-se a arrancar das suas vítimas a sentença das suas mortes. Com ele perecem as palavras pérfidas! É pelo seu grito de dor que se exprime a raça humana, a planta arrancada aos seus flancos por um esforço desmedido. Tu nos lançaste na espessura como um fermento. Polegada a polegada, retomaremos o universo que em pecado nos tirou e devolver-to-emos, tal qual o recebemos, na sua ordem e na sua santidade, na primeira manhã dos dias. Não nos meças o tempo, Senhor! A nossa atenção não se aguenta, o nosso espírito volta-se tão rapidamente! Sem cessar, o olhar espia, à direita e à esquerda, uma saída impossível; sem cessar, um dos teus trabalhadores atira ao chão a sua ferramenta e vai-se embora. Mas a tua piedade nunca se cansa e, por toda a parte, apresentas-nos a ponta da espada; o fugitivo retomará a sua tarefa ou perecerá na solidão... Ah! O inimigo que sabe muitas coisas não saberá aquela! O mais vil dos homens leva consigo o seu segredo, o segredo do sofrimento eficaz, purificador... Porque a tua dor é estéril, Satã!

GEORGES BERNANOS (1888-1948)

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

27 Fevereiro - Sabes quem somos



Senhor, nosso Deus!
Sabes quem somos:
homens
que têm boa consciência
e homens
que têm má consciência,
pessoas contentes e pessoas descontentes,
pessoas com certezas e pessoas ansiosas,
crentes, semicrentes,
e descrentes ...
Agora,
eis-nos todos diante de Ti
nas nossas diferenças,
todos iguais,
porque vivemos todos no nosso erro
diante de Ti,
e uns diante dos outros;
iguais porque, um dia, todos iremos morrer;
iguais porque sem o teu Amor estaríamos todos perdidos;
mas iguais também porque a tua ajuda
foi prometida a todos nós e concedida
em teu Filho bem -amado,
Nosso Senhor Jesus Cristo.

KARL BARTH (1886-1968)

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

26 Fevereiro - David vencido



Corro e julgo-me livre; um vento de sonolência
Revolve em mim os pesados ramos do Desejo,
E minha mão, erguendo-se para a árvore de Ciência,
Tem a forma do fruto que gostaria de apanhar.

Mas - graça insidiosa, desumano malefício -
Alguém morrerá por mim que não o conhecia;
No momento de colher o fruto das minhas delícias,
Uma morte bem-amada sob meus passos dormia.

Providência implacável, de artimanhas tão fecunda,
Ó tu, de meu desejo adorável Inimigo
Que soubeste afastar, com um rosto já submisso,
O jugo delicioso e criminoso do mundo.

Deus gigante! Vê, envergonhada, fraca e nua,
Esta criança que te desafia: nem sua funda tem pedra
E seus joelhos estão feridos por antigas orações,
O meu desejo - este David que quer ser vencido.


FRANÇOIS MAURIAC (1885-1970)

domingo, 25 de fevereiro de 2024

25 Fevereiro - Agora que sou velha



Meu Deus,
Que te oferecerei, agora que sou velha?
Que posso eu, perdido o valor e o resto do meu resto vai caindo em pó cada vez mais todos os dias? Que posso oferecer-te, hoje que já nem há um dia, mas uma queda sem piedade de horas perdidas e isoladas de vida?

Ó meu Deus, que te oferecerei?
Oferecer-te-ei a minha destruição segundo a minha vontade e a ordem por Ti prescrita a toda a criatura.
Sopro, gota a gota, oferecer-te-ei o último sacrifício humano num templo sem fiéis onde, para a mais secreta imolação no mais afastado dos tabernáculos, serão Só, serão Um, sacerdote e hóstia, sacrifício e vitima, eu mesma.
Assim seja.


MARIE NOEL

sábado, 24 de fevereiro de 2024

24 Fevereiro - Oração por todas as espécies de necessidades



Meu Deus, venho a Ti para buscar um pouco de ajuda
Com as pobres gentes que me pesam no coração.
Elas sofrem. Não sei onde encontrar o remédio
Para a sua sorte nem como tirar-lhes a sua dor.
Meu Deus, meu Deus, tua piedade vê mais claro que a nossa.

Deponho-os no teu regaço um após outro:
Livra-os do mal, meu Deus, cada um do seu...

- Eu, Senhor? Ó meu Deus, eu não preciso de nada.
É minha vizinha. Ai! Deseja tanto morrer!
Deixou acabar seu pão e não tem mais.
Não sabia servir-se da sua vida
E ficou com seu corpo encerrado,
Sua miséria infinda, seus velhos dias já sem uso.
Ah! Para sair de lá, encontra-nos uma passagem.
Sou pobre e pouco tenho que lhe dar...

- Eu, Senhor? Ó meu Deus, eu não preciso de nada.
É meu irmão doente. Ai! Arrastar o ano
Sempre na mesma estação magra e dolente,
Secar sem fruto, semelhante ao trigo emurchecido
Que não pode levantar-se e jaz sob a erva,
Sabes, ó meu Deus, como a prova é dura?
Mas eu sei e to imploro. Impede que ela dure
Para aquele, fala e sua força voltará...

- Eu, Senhor? Ó meu Deus, eu não preciso de nada.
É a minha amiga enlutada. Pálida na sua casa vazia,
Onde seus olhos já não estão, ela procura sem ver,
Vagueia, espiando o choque surdo da sua pena.
Meu Deus, não a deixes sozinha com a noite,
Mas desce até ela, vai lá imediatamente
Para ajudá-la a chorar; e, enquanto ela chora,
Reata, em segredo, a sua ligação ao mundo...

- Eu, Senhor? Ó meu Deus, eu não preciso de nada.
É a minha irmãzinha que não é nada bonita,
Minha irmã parecida comigo que não é feliz.
É difícil, ó Deus, mesmo quando esquecemos,
Caminhar todos os dias sem o sol no coração,
Passar sem entrar à porta das ternuras.
Ó Pai! Por piedade, que um pouco de amor a acaricie,
Ser feliz um momento far-lhe-ia muto bem...

- Eu, Senhor? Ó meu Deus, eu não preciso de nada.
Meu velho professor... O que leu enchia dez cabeças.
Como ele te servia, ó meu Deus! Melhor que eu,
E era tão bom; bastava-lhe saber que existes.
Não lhe dirás nada que lhe inspire a fé?
Que infeliz! Só tem a si mesmo como luz!
Onde te encontraria ele? Procura-o tu primeiro,
Ó Graça, começa a conversar com ele...

- Eu, Senhor? Ó meu Deus, eu não preciso de nada.
Minha mãe... Um coração sempre quase a dividir-se,
Perdido - como o meu - quando à volta serena tudo.
Na sua turbação, Senhor, quem poderia tomá-lo
E, do fundo da noite, devolvê-lo ao dia?
Mas Tu, que o vês bater na pobre mulher,
Ó meu Deus, prepara, na sombra desta alma,
Uma nova inquietação, depressa, um novo auxílio...

- Eu, Senhor? Ó meu Deus, eu não preciso de nada.
Olha, ó meu Deus, todos os que encontro,
Aqueles com quem paro, a sofrer um instante
E que logo deixo. Senhor, mostro-tos,
Lembra-te deles quando eu me esquecer - e são muitos! -,
Fica com eles enquanto eu passo,
Leva-os até à noite porque já antes estou cansada.
Salva-os a todos por mim que não tenho como...

- Eu, Senhor? Ó meu Deus, eu não preciso de nada.
É verdade, não tive nenhuma sorte nem morada,
Nem nenhum bom caminho desde que me fui,
Nem sequer, talvez, ternura bastante.
- Meu coração tremia tão forte que procurei mal.
É verdade, meu Deus, não tenho nenhum bem
Nem felicidade, nem saúde, nem riqueza. Não importa,
Tenho tudo o que preciso e bem o sabes,
Deus de alegria, ó meu Deus, eu não preciso de nada.


MARIE NOEL (1883-1967)

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

23 Fevereiro - Faz com que eu te reconheça



Meu Deus, ser-me-ia tão doce que, no meio do esforço de sentir que, à medida que me desenvolvia, eu ia aumentando a tomada de posse que tens sobre mim; ser-me-ia tão doce, ainda, sob o impulso interior da vida ou entre o jogo favorável dos acontecimentos, abandonar-me à tua Providência. Faz com que, depois de ter descoberto a alegria de todo o crescimento para Vos fazer ou para Vos deixar crescer em mim, aceda sem perturbação a esta última fase da comunhão ao longo da qual te possuirei diminuindo em Ti.

Depois de te ter apercebido como Aquele que é «mais eu mesmo», faz com que, quando chegar a minha hora, eu te reconheça sob as espécies de cada potência, estrangeira ou inimiga, que parecerá querer destruir-me ou suplantar-me. Quando, no meu corpo (e muito mais no meu espírito), o desgaste do tempo começar a deixar as marcas da idade; quando o mal, que diminui ou arrebata, se estabelecer em mim ou à minha volta, ou nascer dentro de mim; no minuto doloroso em que eu repentinamente tomar consciência de que estou doente ou que me tornei velho; sobretudo nesse momento derradeiro, em que sentir que me escapo a mim mesmo, absolutamente passivo nas mãos das grandes forças desconhecidas que me formaram; em todas estas horas sombrias, faz, meu Deus, com que compreenda que és Tu (desde que a minha fé seja suficientemente grande) quem afasta dolorosamente as fibras do meu ser para penetrar até à medula da minha substância, para me arrebatares em Ti.

Sim, quanto mais profundo na minha carne se incrustou e se tornou incurável, tanto mais podes ser Tu quem eu abrigo como um princípio amante, activo, de depuração e afastamento. Quanto mais o futuro se abre diante de mim como uma fresta vertiginosa ou uma passagem escura, tanto mais, se me aventurar na tua palavra, posso confiar para me perder ou me abismar em Ti - ser assimilado pelo teu corpo, Jesus.

Ó Energia do meu Senhor, Força irresistíve1 e viva, porque és o mais infinitamente forte de nós dois, é a Ti que cabe o papel de me consumir na união que deve fundir-nos juntos. Por isso, dá-me algo de mais precioso ainda que a graça por que te oram todos os fiéis. Pois não morro o bastante quando comungo. Ensina-me a comungar, morrendo.

PIERRE TEILHARD DE CHARDIN

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

22 Fevereiro - Oração de São Pedro



Foi por ti que um dia fui p’ra além da praia.
Descobri em ti um mar que eu nem sabia haver.
"Faz-te ao largo, confia em mim."
Disseste e a praia inteira parou.
"Lança as redes, confia em Mim."
Passaste e segredaste-me: "Vem."

Onde iria eu sem Ti, Senhor,
Se Tu falas e eu ouço o mar?
Irei conTigo onde quer que vás,
Onde quer que o vento sopre
Até ao dia em que o mar me levar.

Eis aqui o amigo em quem Tu confiaste
E um dia te negou por medo ou por traição, nem sei.
Mas olhaste e o mar se acalmou,
Em teu perdão, de novo, encontrei
Noutra praia um dia a nascer.
Passaste e segredaste-me: "Vem."

Vi em ti a força e a ambição da rocha
Invencível, eu, contigo a caminhar p’lo mar!
Mas um dia não entendi,
Vieste p’ra me lavar os pés.
Quem és Tu, Senhor? Quem sou eu?
Passaste e segredaste-me "Vem."

Nem sei o que me aconteceu,
Porque calhou ser eu a ter no barco alguém que eras Tu.
Só sei do antes e o depois,
Do antes sensato e o depois a teu lado,
Peixe meio-alado a voar no fundo do mar,
No fundo do mar.

PE. NUNO TOVAR LEMOS


28 Fevereiro - Sob o sol de Satã

Senhor, não é verdade que te tenhamos amaldiçoado; que pereça esse mentiroso, essa falsa testemunha, o teu insignificante rival! Ele ...